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Quem participa do orçamento participativo?

Etapas do Orçamento Cidadão (clique para ampliar; fonte)

A participação popular na elaboração do orçamento municipal está prevista em diferentes níveis normativos — da Constituição Federal à Lei Orgânica do Município. Até 2019, essa participação se dava exclusivamente por meio de audiências públicas presenciais nas subprefeituras. Nelas, a população podia registrar por escrito suas propostas e sugestões, mas este material não era devidamente sistematizado, influenciando pouco a composição final do orçamento. Tampouco havia um mecanismo consistente de prestação de contas sobre o atendimento das demandas apresentadas.

Em 2020, buscando aprimorar a efetividade e a rastreabilidade da participação e, ao mesmo tempo, oferecer alternativa às audiências presenciais suspensas durante a pandemia de COVID-19, a Prefeitura lançou o Portal Participe+, plataforma digital para processos participativos e consultas públicas. O primeiro processo implementado foi o Orçamento Cidadão (OC), denominação dada ao procedimento de engajamento popular na elaboração do Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) para o ano seguinte. Desde então, o modelo digital segue em vigor, agora complementado pelas audiências presenciais — as propostas colhidas nas audiências são posteriormente inseridas no portal pela equipe da Secretaria Municipal de Planejamento e Eficiência (SEPLAN).

Papel do Conselho Participativo Municipal

O ano de 2020 foi também meu primeiro ano no Conselho Participativo Municipal (CPM), que tem um papel ativo no Orçamento Cidadão. Entre suas atribuições está a seleção das 15 propostas que serão analisadas quanto à viabilidade técnica e orçamentária; dessas, até 5 podem ser criadas diretamente pelo próprio Conselho. Se consideradas viáveis, as propostas são submetidas à votação popular. As mais votadas, respeitando o limite de R$ 10 milhões por subprefeitura, tornam-se Compromissos, cuja execução deve ocorrer no exercício seguinte.

Acompanhei o processo desde suas primeiras edições, observando sua evolução, suas limitações e a implementação — ou não — de propostas no território da Subprefeitura da Vila Mariana. Infelizmente, os resultados práticos ficaram aquém das expectativas: apenas uma parcela pequena das propostas gerou entregas concretas para a população. A seguir, apresento alguns dos fatores que parecem contribuir para esse baixo índice de efetividade.

Baixa divulgação e desinformação

A ideia de um programa pelo qual a Prefeitura se compromete a executar diretamente demandas da população local deveria despertar grande interesse da sociedade, mas isso não acontece. Em 2025, foram enviadas 3,1 mil propostas em toda a cidade — algumas dezenas por subprefeitura. A Subprefeitura da Vila Mariana, com uma população de 338 mil habitantes, recebeu apenas 86 propostas este ano, a maioria delas feitas pelos próprios conselheiros ou ex-conselheiros já envolvidos com a participação social.

Mesmo após seis edições consecutivas, grande parte da população desconhece o programa. Entre os que conhecem, muitos não têm clareza sobre os critérios que determinam se uma proposta será considerada viável. Além do limite de R$ 10 milhões por subprefeitura estabelecido nos últimos anos, há propostas que, embora legítimas, não são de natureza orçamentária, mas dependem de alteração legislativa, como uma proposta que pedia a destinação de 1% do orçamento para a Secretaria do Meio Ambiente. Outras esbarram em despesas de custeio contínuas: por exemplo, a construção de uma nova UBS pode caber dentro dos R$ 10 milhões, mas os custos permanentes de operação tornam a proposta inviável no âmbito do OC.

Em 2025, a situação se agravou porque as audiências públicas do OC foram realizadas conjuntamente com as do Plano Plurianual (PPA). Enquanto o PPA orienta diretrizes e programas para toda a cidade ao longo de quatro anos, o OC trata de demandas locais a serem executadas no prazo de um ano. Essa sobreposição levou muitos participantes a inserir propostas do PPA no OC e vice-versa.

 A comunicação oficial pouco esclarece esses critérios, o que leva ao descarte imediato de grande número de propostas.

Dificuldades do portal

Durante períodos de maior demanda, o Participe+ frequentemente exibe mensagens de erro — como o recorrente “Erro 505” — que impedem temporariamente o acesso. Embora as instabilidades sejam geralmente resolvidas em poucas horas, muitos usuários não retornam para completar suas propostas.

Outra barreira é a restrição de caracteres nos formulários. Essa limitação força proponentes a simplificarem excessivamente a descrição de suas propostas, comprometendo o detalhamento necessário para a avaliação posterior. Embora seja possível anexar arquivos, essa funcionalidade adiciona uma camada de complexidade ao processo, dificultando a tarefa especialmente para usuários com pouca familiaridade tecnológica ou para os muitos que acessam o portal por celular.

Além disso, o sistema de “apoios”, disponível na fase de envio de propostas, pode produzir distorções. A lógica oficial é de que os apoios funcionam como uma indicação preliminar de interesse público, ajudando conselheiros participativos a priorizar as propostas mais relevantes. Na prática, porém, o mecanismo favorece propostas inseridas no início do prazo, por permanecerem visíveis por mais tempo, e não necessariamente por terem maior aprovação popular. Propostas de alta qualidade inseridas nos últimos dias tendem a receber poucos apoios simplesmente por terem menor janela de exposição.

O sistema ainda pode gerar confusão entre “apoios” e “votos”. Muitos usuários acreditam que, ao apoiar uma proposta, já estão votando nela. No entanto, apenas as propostas pré-selecionadas pelo CPM e consideradas viáveis pela Prefeitura seguem para a fase de votação, na qual os votos efetivos são computados. Como grande parte das pessoas não acompanha essa transição, muitas deixam de retornar ao portal para votar na proposta que desejam ver implementada.

Baixos valores

A verba total do OC para 2026 é de R$ 320 milhões, o que corresponde a apenas 0,23% do orçamento municipal previsto de R$ 135,4 bilhões. Considerando a relevância estratégica da participação social, essa proporção é extremamente reduzida. Para efeito de comparação: apenas os gastos previstos com recapeamento e tapa-buraco somam R$ 1,5 bilhão — cerca de cinco vezes o valor reservado às demandas diretas de 11,4 milhões de paulistanos.

Mesmo levando em conta que a maior parte do orçamento municipal é composta de despesas obrigatórias, haveria espaço para ampliar significativamente a participação cidadã na definição de investimentos públicos.

Desigualdade e inequidade territorial

A distribuição idêntica de R$ 10 milhões para cada subprefeitura, independentemente de sua população ou vulnerabilidade, é injusta. A Subprefeitura de Perus, com cerca de 163 mil habitantes, recebe proporcionalmente quatro vezes mais recursos per capita do que a do Campo Limpo, que tem 675 mil. A Subprefeitura da Vila Mariana — onde estão alguns dos distritos com os melhores indicadores socioeconômicos — recebe o mesmo valor que a da Freguesia do Ó, onde fica a Brasilândia, distrito com o maior índice de vulnerabilidade da cidade. Embora o critério igualitário simplifique a operação, sua consequência é aprofundar desigualdades existentes.

Um indicativo adicional dessa distorção no OC aparece quando se observa o Plano Plurianual 2026-2029, que propõe uma verba mínima de R$ 10 bilhões para ser distribuída segundo o IDRGP – Índice de Distribuição Regional do Gasto Público: distritos mais vulneráveis devem receber proporcionalmente mais recursos. Trata-se de um princípio de equidade territorial para reduzir desigualdades estruturais. Seria coerente, portanto, aplicar o mesmo critério ao Orçamento Cidadão: se outras políticas municipais já utilizam métricas de desigualdade para orientar investimentos, não faz sentido que o OC — que pretende justamente captar demandas locais — ignore o contexto socioeconômico de cada região.

Problemas nas análises de viabilidade

A SEPLAN é responsável por encaminhar às diferentes secretarias e subprefeituras as propostas selecionadas pelos CPMs para análise de viabilidade antes da votação popular. Propostas tecnicamente pertinentes são frequentemente classificadas como “inviáveis” apenas porque foram encaminhadas a unidades que alegam não ter competência sobre o tema.

Um exemplo é a proposta de elaboração do Plano de Bairro de Mirandópolis. A Secretaria de Urbanismo e Licenciamento (SMUL) considerou a proposta inviável afirmando que a competência seria da Subprefeitura; esta, por sua vez, justificou a inviabilidade alegando o oposto — que o assunto deveria ser tratado pela SMUL. O resultado é que a proposta não avançou, não por falta de mérito, mas por uma espécie de “jogo de empurra” institucional.

Há também situações em que a inviabilização decorre de interpretações equivocadas. Apresentamos uma proposta solicitando a contratação de assessoria técnica para apoiar o desenvolvimento de Planos de Bairro na Subprefeitura da Vila Mariana. O título da proposta que aparece na página foi redigido pela equipe da SEPLAN. Apesar das reiteradas tentativas de esclarecimento na fase de recursos, a Subprefeitura interpretou a proposta como se ela pedisse o desenvolvimento integral desses planos e, com base nesse equívoco, a classificou como inviável. De forma paradoxal, uma proposta praticamente idêntica apresentada na Subprefeitura de Pinheiros foi considerada viável, recebeu orçamento de R$ 1,2 milhão, foi eleita e consta como Compromisso a ser executado em 2026, embora, curiosamente, a página oficial da proposta mantenha o carimbo de “inviável” nas análises de viabilidade.

Em outro caso, uma proposta solicitava a criação de uma ligação cicloviária de apenas três quadras entre duas ciclovias já existentes. A Secretaria de Mobilidade reconheceu, em sua análise técnica, que o trecho consta no Plano Cicloviário da cidade. Ainda assim, a proposta foi categorizada como inviável porque sua implantação não estava prevista especificamente para 2026. Surge então uma pergunta inevitável: se uma consulta pública não tem sequer a capacidade de influenciar o calendário de uma obra já planejada, qual é, afinal, sua utilidade?

Essas inconsistências revelam uma preocupante falta de articulação interna nos processos da Prefeitura. O resultado é um sistema incapaz de incorporar contribuições da sociedade ou de adaptar seu planejamento para além de suas rotinas administrativas tradicionais — o oposto do que se espera de um instrumento de participação democrática.

Propostas canceladas e desvirtuadas

A saga das demandas populares não termina na votação. Mesmo quando uma proposta supera todas as etapas — compreensão do processo, dificuldades tecnológicas do portal, limitações orçamentárias, assimetrias territoriais, vícios nas análises de viabilidade, pré-seleção dos CPMs e votação popular — nada garante que o Compromisso resultante será efetivamente executado.

Das 17 propostas eleitas para execução entre 2021 e 2024 na Subprefeitura da Vila Mariana, que já deveriam estar plenamente finalizadas, apenas 7 aparecem como “concluídas” no Monitoramento do Participe+. Algumas foram canceladas por diferentes motivos; outras foram profundamente alteradas, gerando resultados diferentes das intenções originais de seus proponentes.

Um exemplo ilustrativo é a proposta que solicitava a substituição das lixeiras metálicas por modelos mais duráveis. Considerada viável no ano anterior, com orçamento de R$ 3,4 milhões, ela se revelou inviável no momento em que o CPM cobrou sua implementação. O motivo: já existe um contrato municipal vigente para fornecimento de lixeiras metálicas em toda a cidade, o que impossibilita a adoção de outro modelo. Um eventual aditamento para alterar o modelo das lixeiras não foi considerado. Assim, algo que era viável tornou-se inviável na prática por razões que poderiam ter sido verificadas ou corrigidas na fase de análise técnica.

Outro caso emblemático é a proposta de criar um parquinho acessível e um espaço sensorial para crianças atípicas. Foi a iniciativa mais votada da Vila Mariana em 2024 e recebeu a maior verba: R$ 6 milhões, redondos. A proposta original, embora não especificasse dimensões ou localização — elementos que exigiriam assessoria técnica — estabelecia que o equipamento deveria ser de fácil acesso, especialmente para pessoas com dificuldade de locomoção.

Sugerimos um trecho ocioso da extensa área verde e plana a poucos metros da estação AACD-Servidor do metrô, junto ao Centro Esportivo Mané Garrincha e o Parque das Bicicletas. A sugestão foi descartada sob o argumento de que a área é administrada pela Secretaria Municipal de Esportes e de que não haveria tempo ou condições para a Subprefeitura — a quem a execução do projeto foi delegada — negociar a cessão administrativa do espaço, embora se trate de área pública.

A Subprefeitura acabou escolhendo uma praça de 13 mil m², de uso consolidado e em bom estado, localizada em um fundo de vale, cujo acesso se dá por ladeiras íngremes. Embora a praça esteja relativamente próxima de uma estação de metrô, suas condições de acessibilidade contrariam o espírito da proposta. Mesmo diante da discordância expressa do CPM, a Subprefeitura manteve a decisão.

O projeto apresentado mostra que o parquinho acessível ocupará cerca de 500 m² e consumirá apenas um décimo do orçamento previsto. A maior parte dos recursos será destinada à requalificação geral da praça, que inclui cachorródromo, quadra de rugby, vestiários e outros equipamentos desvinculados da proposta original.

Esse tipo de desvirtuamento mostra como propostas escolhidas pela população podem ser reconfiguradas de tal forma que sua execução final atende mais aos interesses ou prioridades da administração do que às necessidades explicitadas pelos cidadãos que as propuseram e votaram.

Vale lembrar que as propostas são elaboradas por cidadãos comuns, sem obrigação de dominar o conhecimento técnico necessário. As equipes técnicas da Prefeitura deveriam acolher as propostas menos como soluções prontas e mais como diagnósticos de problemas que os munícipes desejam ver resolvidos. Com essa compreensão, uma parte das propostas poderiam ser aperfeiçoadas em vez de declaradas inviáveis na fase de análise técnica.

Conclusão

A análise apresentada aqui baseia-se principalmente na experiência acumulada no CPM da Vila Mariana, onde acompanhei de perto todas as edições do Orçamento Cidadão desde 2020. Mas conversas com conselheiros de diversas regiões da cidade mostram que essas dificuldades são comuns nas outras subprefeituras.

O Orçamento Cidadão tem potencial para aproximar a população das decisões do governo. Espera-se que essas reflexões contribuam para o aperfeiçoamento do programa, de modo que a participação social deixe de ser apenas uma formalidade e passe a influenciar de forma efetiva as políticas públicas municipais.

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